REPÚBLICA e LAICIDADE

Glossário da Laicidade

GLOSSÁRIO ESSENCIAL DA LAICIDADE

Adaptado do livro L’AVENIR LAIQUE de Étienne PION

por Luis M. Mateus

 

A primeira manifestação da honestidade de espírito é não armadilhar o discurso com uma forma manhosa: para tal há especialistas reputados que sabem, com uma habilidade diabólica (ou santa), levar outros a deixarem-se abusar pela sedução da forma. Não é essa a escolha que preside a esta tentativa de reflexão: quem diz laicidade diz franqueza… Isso não exclui as precauções semânticas necessárias. (…) Porque há termos como clericalismo, religiosidade, tolerância, dogmatismo, ideologia e outros cujo significado não é necessariamente idêntico para todos os que os usam, mais vale propor uma convenção sobre o sentido em que cada um deles será utilizado. (P.31)



LAICO [LAIQUE (fr)]

Termo que deriva da palavra grega Laikos significando “que pertence ao povo” (povo considerado no sentido lato de classe social e não no sentido estrito de eleitorado). Os Romanos utilizaram laicus com sentido semelhante. (p.32)

LEIGO [LAIC (fr)]

Expressão utilizada desde há muito pela Igreja Católica para designar os católicos não membros do clero, mas que exercem responsabilidades menores ou marginais no seio da comunidade religiosa. (p.32)

LAICIDADE [LAICITÉ (fr)]

Pretender definir o conceito de Laicidade é pretender fixar o seu conteúdo de um modo que pode parecer intangível, para não dizer dogmático, o que seria atraiçoar o próprio espírito laico que exige uma abordagem mais aberta dos conceitos. Opta-se assim por analisar o conteúdo ético da Laicidade, abarcar o seu campo de aplicação, sistematizar as suas diversas aplicações e múltiplas potencialidades.

A Laicidade pode ser considerada sob dois pontos de vista:

– enquanto ética;

– enquanto estatuto cívico.

Enquanto ética, a Laicidade apresenta-se como um conjunto de valores de uso individual e colectivo.

Enquanto estatuto cívico e social, a Laicidade caracteriza-se por um certo número de necessidades que permitem reger a sociedade ou as instituições.

Considerada como uma ética, a Laicidade funda-se num certo número de princípios que tomaram corpo, se harmonizaram, se completaram, numa progressiva eclosão nascida dos factos, das necessidades e das evoluções.

Os valores constitutivos da ética laica são, antes de mais, a liberdade de pensamento, a independência do espírito e a tolerância recíproca: todos estes conceitos se encadeiam numa sequência racional e coerente. Esta é tão fundamental que poderia bastar para evidenciar claramente o perfil da Laicidade.

Em função dos seus valores constitutivos, a ética laica permite a realização de cada indivíduo e contribui para estabelecer a harmonia civil.

Esta projecção da ética laica no Domínio da vida social, conduz-nos ao segundo aspecto da Laicidade considerada enquanto estatuto cívico e social.

O estatuto laico de um Estado, de uma sociedade ou de uma instituição, supõe a sua independência efectiva, quer face às influências, às hierarquias e às organizações religiosas e dogmáticas, quer face às das comunidades cultuais.

Uma concepção laica da vida social e do papel que aí desempenha o indivíduo reclama que tudo aquilo que respeita ao religioso e ao sagrado seja do domínio privado, individual e facultativo, e que tudo aquilo que respeita à vida pública, cívica e política seja totalmente preservado de qualquer influência confessional ou comunitária, bem como de toda a cooperação com os clérigos ou as organizações cultuais. (pp.32-33)

Nascida da emancipação progressiva dos espíritos face às condicionantes espirituais e políticas que dominaram as sociedades durante milénios, a Laicidade reveste hoje a aparência primeira de uma protecção contra todas as opressões de origens dogmáticas, sociais, estatais ou simplesmente confessionais.

A tolerância recíproca e a liberdade de consciência têm em comum o não serem mais espontâneas que a democracia: umas e outras são conquistas da civilização em períodos de equilíbrio e desenvolvimento. O que hoje denominamos Laicidade não é mais conforme ao instinto social ou individual que os outros valores democráticos: ela resulta de uma evolução esclarecida da consciência pública e individual. (p.85-86)

LAICIDADE vs. LAICISMO [LAICISME (fr)]

Do ponto de vista dos valores, a Laicidade é tão homogénea, tão rica e tão coerente que se é tentado a passar da sua concepção enquanto ética para uma de ideologia (na exacta acepção do termo). Este desvio semântico poderia traduzir-se por uma denominação sem dúvida mais exacta e a palavra LAICISMO acorreria então naturalmente ao espírito, o que teria a vantagem de reservar a palavra LAICIDADE para definir o estatuto social e cívico decorrente do levar à prática dos princípios laicos.

O inconveniente desta formulação é ela poder ferir os espíritos susceptíveis, frequentemente alérgicos a palavras em “ismo” que revestem para si uma conotação vagamente doutrinária: a tendência (ou a moda) da desideologização dos espíritos é tal que certas palavras ficaram injustamente afectadas por um sentido quase pejorativo. Assim, correr-se-ia o risco de se ser mal compreendido ao explicitar a nuance entre “Laicismo”, como filosofia dos valores laicos, e Laicidade, como conjunto de modalidades estatutárias que traduzem na prática as implicações cívicas e sociais dos princípios laicos.

CLERICAL [CLÉRICAL (fr)]

Inicialmente, o seu sentido primeiro era “que concerne ou que pertence ao clero”. Este sentido continua a ser válido, mas sofreu uma evolução devido ao comportamento frequente dos cleros dominantes (em França [e em Portugal], do clero católico romano), comportamento com objectivos hegemónicos sobre os assuntos civis, sociais, cívicos e políticos. Nesse sentido, clerical significa tudo o que concorre ou visa a apoiar esse tipo de influência. (p.34)

CLERICALISMO [CLÉRICALISME (fr)]

A História, em numerosa épocas, viu manifestarem-se iniciativas “clericais” conduzidas, em diversos domínios e ocasiões, por este ou aquele clero dominante e pelas forças sociais e políticas que lhe eram dedicadas e que lhe permitiram desempenhar um papel determinante na vida cívica do países. O fenómeno não desapareceu, nem em França nem noutros locais.

Logicamente, denomina-se clericalismo essa vontade ou tentativa de submeter os assuntos políticos de um país à influência dominante de um clero e dos partidos que servem os seus interesses. (p.34)

ANTICLERICALISMO [ANTICLÉRICALISME (fr)]

Evidentemente, devido às suas características e finalidades, o clericalismo gerou, numa parte da opinião pública, a recusa dessa influência e dominação [clerical] e é esse movimento de defesa, leia-se emancipação, que se designou logicamente por anticlericalismo.

ANTICLERICAL [ANTICLÉRICAL (fr)]

Aqueles que se opõem ao clericalismo, designam-se e reconhecem-se entre si como anticlericais, designação que não tem nada de pejorativo, bem pelo contrário.

Convém sublinhar que “anti-clericalismo” não se identifica com “arreligiosidade” e que “anticlerical” não qualifica necessariamente um comportamento ou uma opinião sistematicamente feita de hostilidade à fé religiosa. Um crente pode desaprovar o clericalismo (e ser portanto anticlerical) sem ter por isso que renegar a sua religião. Um laico é inevitavelmente um adversário do clericalismo; é portanto anticlerical, sem ser, por princípio, antireligioso. Para um laico, a fé, tal como a recusa da fé, são igualmente respeitáveis, desde que se manifestem no quadro do respeito da lei e do indivíduo. (p.34-35)

IDEOLOGIA [IDÉOLOGIE (fr)]

Em sentido real, designa um sistema de ideias e de valores, constituindo um conjunto coerente de conceitos. É uma palavra nobre e respeitável, em si mesma (ideologia = ciência, estudo das ideias) que é frequentemente afectada por um segundo sentido pejorativo, decorrente da utilização aproximada que muitas vezes se faz dela: assimilando-a à noção de doutrina intangível e partidária, utiliza-se de qualquer maneira, com um falso sentido… que convém facilmente aos espíritos tímidos, inimigos das escolhas claras.

Frequentemente, é preferível utilizar em seu lugar o termo “ética” (não sinónimo, mas relativamente próximo), mais facilmente aceitável pelos espíritos alérgicos às construções rigorosas do pensamento. É erradamente que muitas vezes se identifica ideologia com certos sistemas fechados de pensamento político de que se não gosta, nem da orientação, nem do conteúdo. Tendo sido esta palavra associada a doutrinas perversas, passou a ser de bom tom considerar que tudo o que é “ideológico” conduz necessariamente à ditadura de um homem ou de um partido.

O termo “ética”, porque menos agressivo para os amadores de consensos pacíficos, evita qualquer risco de má compreensão. (p.36)

DOGMA [DOGME (fr)]

Conjunto de ideias, dados, princípios e obrigações que se impõem como irrecusáveis, indiscutíveis e que não sofrem contestação, nem discussão, nem se podem pôr em causa, nem carecem de explicação. (p.34) Um dogma deve ser aceite (acreditado) sob pena de perda da alma e de ser votado a todas as maldições dos crentes; aquele que recusa o dogma é, para os dogmáticos, sujeito de exclusão, de recusa infamante… leia-se de eliminação. (p.36)

Foi desse modo que a maioria das religiões reveladas apresentaram os seus dogmas fundamentais. A religião católica foi assim que o praticou durante mais de 1 milénio e certas tendências islâmicas e correntes judaicas concebem desse modo a ortodoxia dogmática.

As religiões reveladas dominantes não a são as únicas a mostrarem-se dogmáticas, já que o fenómeno também existe no domínio político onde por efeito de perversões partidárias os homens dos aparelhos pretendem tornar indiscutíveis as afirmações ideológicas: então, minoritários ou opositores transformam-se em desviacionistas, inimigos da causa e decide-se a sua eliminação. Como não recordar os atrozes genocídios estalinistas, hitlerianos e todas as repressões praticadas nos sistemas de opressão gerados pelo dogmatismo?

Este perturba o espírito humano em inúmeros domínios, mesmo onde nunca se deveria manifestar: não o encontramos no plano da ciência sempre que os notáveis do conhecimento oficial se arrogam o direito de editar as definições irrecusáveis de uma pretensa verdade obrigatória? Das desgraças de Kepler e Galileu às das vítimas de Lyssenko, tais concepções demonstraram a sua nocividade… e as reabilitações não fazem desaparecer o mal.

Todas as certezas consideradas como definitivas trazem em si mesmas os genes da sua perversão no sentido do dogmatismo, por pouco que elas estejam ligadas a tramas de poderes ou de dominação (cultural, política, religiosa, científica e mesmo artística). (p.36-37)

TOLERÂNCIA [TOLÉRANCE (fr)]

No seu sentido próprio, tolerar é aceitar com maior ou menor boa vontade um comportamento ou um pensamento que não se partilha. Tolerar é suportar uma diferença de que, de facto, se deplora a existência. Tolerar é, nessa acepção do termo, resignar-se ao que se não pode impedir.

A noção de tolerância contém portanto uma parte mais ou menos consciente de comiseração e mesmo de hostilidade recalcada ou dominada. A palavra não está assim fundamentalmente associada a uma atitude de espírito particularmente aberta e radiosa.

Efectivamente, na maioria dos casos, a ideia de tolerância compreende-se sobretudo como sendo o contrário da de intolerância, termo que se compreende mais facilmente porque evoca espontaneamente os bloqueios do pensamento, as atitudes de hostilidade, as fracturas, as rejeições frequentemente geradoras de comportamentos repressivos, efectivos ou potenciais.

A tolerância é portanto a recusa da intolerância; ela refere-se e associa-se a um verdadeiro liberalismo de pensamento e é uma prova de apego a valores positivos, designadamente, ao respeito pelo outro, mesmo quando ele exprime ideias com que se discorda. (p.100)

Para um laico, a tolerância não se concebe como uma colagem de diferenças ou um adoçar de pontos de vista diferentes. Pelo contrário, a prática da tolerância mútua necessita da confrontação sem dissimulação das opiniões e das escolhas, uma confrontação levada a cabo com a vontade sistemática de procurar compreender o outro e de lhe expor claramente, em resposta, os argumentos de que o próprio se pode socorrer, sabendo que o outro os escutará. A tolerância é a aceitação das incompatibilidades eventuais sem se recorrer à violência (ainda que verbal) ou a agressões morais contra o contraditor. A tolerância exige que, de forma mútua e recíproca, no respeito pelo outro enquanto indivíduo, se debata com espírito aberto, sem bloqueio nem recusa da compreensão dos argumentos refutados, na condição de que o contraditor proceda do mesmo modo e que, pelas suas posições e comportamentos, não negue a própria ideia de tolerância.

A tolerância pode conviver com a veemência e a firmeza: não se satisfaz com a hipocrisia, o laxismo e a complacência emulatória. (p.102-103)