REPÚBLICA e LAICIDADE

Fátima e a transformação do catolicismo português

Fátima e a transformação do catolicismo português

As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.

Fátima I: a manifestação anti-republicana

No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.

No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].

Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.

Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.

Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.

Fátima II: o santuário do Estado Novo

Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».

Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.

O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».

Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia

Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.

Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.

Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.

Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.


Manuel Nunes Formigão

Manuel Nunes Formigão, principal promotor de Fátima (Tomar, 1883 – Fátima, 1958; doutorado em Teologia e Direito Canónico em Roma em 1909).


Ricardo Alves

Setembro de 2008


[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.

[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.

[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.

[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).

[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.

[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.

[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).

[8] http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000626_message-fatima_po.html

[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).