REPÚBLICA e LAICIDADE

Causas da decadência dos povos peninsulares

Excertos de

CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES (1871)

por Antero de Quental

O CATOLICISMO COMO CAUSA DA DECADÊNCIA NACIONAL

(…)

Da decadência moral é esta a causa culminante! O catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o de uma forma completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI. As tendências, porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra coisa senão o protesto do sentimento cristão, livre e independente, contra essas tendências autoritárias e formalísticas. Essas tendências eram lógicas, e até certo ponto legítimas, dada a interpretação e a organização romana da religião cristã: não o eram, porém, dado o sentimento cristão na sua pureza virginal, fora das condições precárias da sua realização política e mundana, o sentimento cristão, numa palavra, no seu domínio natural, a consciência religiosa. É necessário, com efeito, estabelecermos uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreenderemos da religião cristã. Se não há cristianismo fora do grémio católico (como asseveram os teólogos, mas como não pode nem quer aceitar a razão, a equidade e a crítica), nesse caso teremos de recusar o título de cristãos aos luteranos, e a todas as seitas saídas do movimento protestante, em quem todavia vive bem claramente o espírito evangélico. Digo mais, teremos de negar o nome de cristãos aos apóstolos e evangelistas, porque nessa época o catolicismo estava tão longe do futuro, que nem ainda a palavra católico fora inventada! É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina. Toda a história religiosa, até ao meado do século XVI, não é mais do que a transformação do sentimento cristão na instituição católica. A Idade Média é o período da transição: há ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a sufocar a vida local e autonómica. Por isso é também esse o período das igrejas nacionais. As da Península, como todas as outras, tiveram, durante a Idade Média, liberdades e iniciativa, concílios nacionais, disciplina própria, e uma maneira sua de sentir e praticar a religião. Daqui, dois grandes resultados, fecundos em consequências benéficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceite, e, num certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver boa moral deduzindo-a de um dogma aceite, e até certo ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequência, de incalculável alcance. O sentimento do dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se nela. Daqui a força dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo lugar, essas igrejas nacionais, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir. Eram tolerantes. À sombra delas, muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e Mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções de uma calamidade nacional. Segunda consequência, de não menor alcance do que a primeira. Se a Península não era então tão católica como o foi depois, quando queimava os Judeus e recebia do Geral dos Jesuítas o santo e a senha da sua política, era seguramente muito mais cristã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam.

Rasga-se, porém, o século XVI, tão prodigioso de revelações, e com ele aparece no mundo a Reforma, seguida por quase todos os povos de raça germânica. Esta situação cria para os povos latinos, que se conservavam ligados a Roma, uma necessidade instante, que era ao mesmo tempo um grande problema. Tornava-se necessário responder aos ataques dos protestantes, mostrar ao mundo que o espírito religioso não morrera no seio das raças latinas, que debaixo da corrupção romana havia alma e vontade. Um grito unânime de reforma saiu do meio dos representantes da ortodoxia, opondo-se ao desafio que, com a mesma palavra haviam lançado ao mundo católico Lutero, Zwingle, Melanchthon e Calvino. Reis, povos, sacerdotes, clamavam todos reforma! Mas aqui aparecia o problema: que espécie de reforma? A opinião dos bispos e, em geral, das populações católicas pronunciava-se no sentido duma reforma liberal, em harmonia com o espírito da época, chegando muitos até a desejar uma conciliação com os protestantes: era a opinião episcopal representante das igrejas nacionais. Em Roma, porém, a solução, que se dava ao problema, tinha um bem diferente caráter. O ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inbalável. Era a opinião absolutista, representante do papado. Esta opinião (para não dizer este partido) triunfou, e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade para as nações católicas. Nem era isso o que elas desejavam, e o que pediram e sustentaram os seus bispos, lutando indefesos durante 16 anos contra a maioria esmagadora das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira reforma, sincera, liberal, em harmonia com as exigências da época. O programa formulava-se em três grandes capítulos fundamentais. 1- Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais, inauguração dum parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos concílios, esses estados gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos do mundo espiritual. 2- O casamento para os padres, isto é, a secularização progressiva do clero, a volta às leis da humanidade duma classe votada durante quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3- Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Destas reformas saía naturalmente a humanização gradual da religião, a liberdade crescente das consciências, e a capacidade para o cristianismo de se transformar dia a dia, de progredir, de estar sempre à altura do espírito humano, resultado imenso e capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram. Os graves prelados, que então combatiam pelas reformas que acabo de apresentar, não desejavam, certamente, nem mesmo previam estas consequências: o próprio Lutero não as previu. Mas nem por isso as consequências deixariam de ser aquelas. Bartolomeu dos Mártires e os bispos de Cádis e de Astorga não eram, seguramente, revolucionários: representavam no Concílio de Trento a última defesa e o protesto das igrejas da Península, contra o ultramontanismo invasor: mas a obra deles é que era, pelas consequências, revolucionária; e, trabalhando nela, estavam na corrente e no espírito do grande e emancipador século XVI. Se houvessem alcançado essa reforma, teríamos nós talvez, espanhóis e portugueses, escapado à decadência. Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da civilização? Contraste significativo, que nos apresenta hoje o mundo! As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura dessas nações; estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais… mas Roma teria caído!

Roma não queria cair. Por isso resistiu longo tempo, iludiu quanto pôde os votos das nações, que reclamavam a convocação do concílio reformador. Não podendo resistir mais tempo, cede por fim. Mas como o fez? Como cedeu Roma, dominada desde então pelos Jesuítas? Estamos em Itália, meus senhores, no país de Machiavell!…Eu não digo que Roma usasse deliberada e conscientemente duma política maquiavélica: não posso avaliar as intenções. Digo simplesmente que o parece; e que, perante a história, a política romana em toda esta questão do Concílio de Trento aparece com um notável carácter de habilidade e cálculo… muito pouco evangélicos! Roma, não podendo resistir mais à ideia do Concílio, explora essa ideia em proveito próprio. Dum instrumento de paz e progresso, faz uma arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador, e fá-lo convergir em proveito do ultramontanismo. Como? Duma maneira simples: 1- dando só aos legados do Papa o direito de propor reformas; 2- substituindo, ao antigo modo de votar por nações, o voto por cabeças, que lhe dá com os seus cardeais e bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta e resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das outras nações. Basta dizer que a França, a Espanha, Portugal, e os Estados católicos da Alemanha nunca tiveram, juntos, número de votos superior a 60, enquanto os italianos contavam 180 e mais! Nestas condições, o concílio deixava de ser universal: era simplesmente italiano; nem italiano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pôde ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma, o concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular!

Composta e armada assim a máquina, vejamo-la trabalhar. Para sujeitar na terra o homem, era necessário fazê-lo condenar primeiro no céu: por isso o concílio começa por estabelecer dogmáticamente, na sessão 5, o pecado original, com todas as suas consequências, a condenação hereditária da humanidade, e a incapacidade de o homem se salvar por seus merecimentos, mas só por obra e graça de Jesus Cristo. Muitos teólogos e alguns poucos sínodos particulares se haviam já ocupado desta matéria: nenhum concílio ecuménico a definira ainda. Um concílio verdadeiramente liberal deixava essa questão na sombra, no indefinido, não prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa algema: o concílio de Trento fez dessa definição o prólogo dos seus trabalhos. Convinha-lhe logo no começo, condenar sem apelação a razão humana, e dar essa base ao seu edifício. Assim o fez de então para cá, ficou dogmáticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinc ac cadaver, dizem os estatutos da Companhia de Jesus.

Na sessão 13 confirma-se e precisa-se o dogma da eucaristia, já definido, ainda que vagamente, no 4 Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da consagração. É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto como este materialismo da presença real para embrutecer o nosso povo, para fazer reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece que era isto o que o concílio desejava!

Na sessão 14 trata-se detidamente da confissão. A confissão existia há muito na Igreja, mas comparativamente livre e facultiva. No 4 Concílio de Latrão restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14 de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação dos fiéis se confessarem em épocas certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na familia, imóvel à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado deplorável da familia, com um chefe secreto, em regra, hostil ao chefe visível? Quem não conhece as desordens, os escândalos, as misérias introduzidas no lar doméstico pela porta do confessionário? O concílio não queria isto, decerto: mas fez tudo quanto era necessário para que isto acontecesse.

Na parte disciplinar e nas relações da Igreja com o Estado predomina o mesmo espírito de absolutismo, de concentração, de invasão de todos os direitos. Na sessão 5, tornam-se as ordens regulares independentes dos bispos, e quase exclusivamente dependentes de Roma. Que arma esta na mão do Papado, que já de si não é mais do que uma arma na mão do jesuítismo! Na sessão 13 só o Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres. É a impunidade para o clero! Na sessão 4 põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares, restrições tais que equivalem a uma verdadeira proibição. Ora, o que é isto senão a suspeição da razão humana, condenada a ler e a pensar pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos? Nas sessões 7, 9, 18, 24 estabelecem-se igualmente disposições tendentes todas a sujeitar os governos, a impor aos povos a polícia romana, apagando implacavelmente por toda a parte os últimos vestígios das igrejas nacionais. Finalmente, a superioridade do Papa sobre os concílios triunfa nas sessões 23 e 25, pela boca do jesuíta Lainez, inspirador e alma do concílio… se é permitido, ainda metafóricamente, falando dum jesuíta, empregar a palavra alma… A redacção de um catecismo vem coroar esta obra de alta política. Com esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu germén, de absorver as gerações nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos duma doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações moribundas, enfermas da pior das enfermidades, a atrofia moral.

Sim, meus senhores! Essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte! Tomo três exemplos. Seja o primeiro a Guerra dos Trinta Anos, a mais cruel, mais friamente encarniçada, mais sistematicamente destruidora de quantas têm visto os tempos modernos, e que por pouco não aniquila a Alemanha. Essa guerra, provocada pelo partido católico, e por ele dirigida com uma perseverança infernal, mostrou bem ao mundo que abismos de ódio podem ocultar palavras de paz e religião. O padre não dirigia sómente, assistia à execução. Cada general trazia sempre consigo um director jesuíta: e esses generais chamavam-se Tilly, Picolomini, os mais endurecidos dos verdugos. Salvou então a Alemanha e a Europa a firmeza indomável dum coração tão grande quanto puro, sereno em face dessas ordens fanáticas. O verdadeiro herói (e único também) dessa guerra maldita, o verdadeiro santo desse período tenebroso, é um protestante, Gustavo Adolfo. Quanto ao Papa, esse aplaudia a matança! O segundo exemplo é a Itália. O terror que inspirava ao Papado a criação em Itália dum Estado forte, que lhe pusesse uma barreira à ambição crescente de dia para dia tornou-o o maior inimigo da unidade italiana. É o Papado quem semeia a discórdia entre as cidades e os príncipes italianos, sempre que tentam ligar-se. É o Papado quem convida os estrangeiros a descerem os Alpes, na cruzada contra as forças nacionais, cada vez que parecem querer organizar-se. “O Papado”, diz Edgard Quinet, “tem sido um ferro sagrado na ferida da Itália, que não a deixa sarar”. Hoje mesmo, se essa suspirada unidade se consumou, não foi no meio das maldições e cóleras do clero e de Roma? O único pensamento que hoje absorve o Papado, é desmanchar aquela obra nacional, chamar sobre ela os olhos do mundo, o ferro estrangeiro, podendo ser; é assassinar a Itália ressuscitada! Estes factos são por todos sabidos. O que talvez nem todos saibam é o papel que o catolicismo representou no assassinato da Polónia. “A intolerância dos jesuítas e ultramontanos”, diz Emílio de Lavelaye, “foi a causa primária do desmembramento e queda da Polónia.” Esta nação heróica, mas pouco organizada, ou antes, pouco unificada, era uma espécie de federação de pequenas nacionalidades, com costumes e religiões diferentes. Encravada entre monarquias poderosas e ambiciosas, como a Austria a Rússia e a Turquia de então, a Polónia só podia viver pela liberdade política, e sobretudo pela tolerância religiosa, que conservasse amigos e unidos contra o inimigo comum os grupos autonómicos de que se compunha. A essa tolerância deveu ela, com efeito, a força e importância que teve na história da Europa até ao séulo XVII: católicos, gregos cismáticos, protestantes, socinianos viveram muito tempo como irmãos, numa sociedade verdadeiramente cristã porque era verdadeiramente tolerante. Um dia, porém, os jesuítas, lá do centro de Roma, olharam para a Polónia como para uma boa presa. Aquela nação era efectivamente um escândalo para os bons padres. Tanto intrigaram, que em 1570 tinham já logrado introduzir-se na Polónia: o rei Estêvão Bathory concede-lhes, com uma culpável imprudência, a universidade de Wilna. Senhores do ensino, e em breve das consciências da nobreza católica, os jesuítas são um poder: começam as perseguições religiosas. Em 1648, João Casimiro, que antes de ser rei fora cardeal e jesuíta, quer obrigar os camponeses ruténios, sectários do cisma grego, a converterem-se ao catolicismo. Estes levantam-se, unem-se aos cossacos, também do rito grego, e começa uma guerra formidável, cujo resultado foi separarem-se cossacos e ruténios da federação polaca, dando-se à Rússia, em cujas mãos se tornaram uma arma terrível sempre apontada ao coração da Polónia. Nunca esta nação teve inimigos tão encarniçados como os cossacos! Sem eles, a Polónia enfraquecida entre vizinhos formidáveis, devia cair, e caiu efectivamente. A partilha expoliadora de 1772 não fez mais do que confirmar um facto já antigo, a nulidade da nação polaca.

Assim pois, meus senhores, o catolicismo dos últimos três séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. “O antro da Esfinge”, disse dele um poeta filósofo, “reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos povos devorados”.

E a nós, espanhóis e portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário; a delação é uma virtude religiosa; a expulsão dos judeus e moiros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o sul de Espanha; a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais; a Inquisição passa os mares, e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e duradoira: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte; o terror religioso, finalmente, corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas, hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização. Com o jesuítismo desaparece o sentimento cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora: a educação jesuítica faz das classes elevadas máquinas ininteligentes e passivas; do povo, fanáticos corruptos e cruéis: a funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os: o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis; realizou-o nas famosas missões do Paraguai; o Paraguai foi o reino dos céus da Companhia de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América, pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia! Por isso o génio livre popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião. Os santos da época já não têm aquele carácter simples, ingénuo, dos verdadeiros santos populares: são frades beatos, são jesuítas hábeis. Os sermonários e mais livros de devoção, não sei por que lado sejam mais vergonhosos; se pela nulidade das ideias, pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade ridícula do estilo. Quanto à arte e literatura mostrava-se bem clara a decadência naquelas massas estúpidas de pedra da arquitectura jesuítica, e na poesia convencional das academias, ou nas odes ao divino e jaculatórias fradescas. O génio popular, esse morrera às mãos do clero, como com tanta evidência o deixou demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de novidades, sobre a literatura portuguesa, o senhor Teófilo Braga. Os costumes saídos desta escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de furtar, os romances picarescos, as farsas populares, o teatro espanhol, os escritos de D. Francisco Manuel e do Cavaleiro de Oliveira. Na falta destes documentos, bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escândalos dessa sociedade aristocrática e clerical! Essa funesta influência da direcção não é menos visível no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia deixar de reagir sobre o espírito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha de tão alto! Os reis eram tão religiosos! Eram por excelência os reis católicos, fidelíssimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela autoridade, pela doutrina, pela instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espírito católico e a influência jesuítica. Nesses tempos santos, os verdadeiros ministros eram os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma questão de Estado. A paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem, apoiava-se na palavra divina. A teocracia dava a mão ao despotismo. Essa direcção via-se claramente na política externa. A política, em vez de curar dos verdadeiros interesses do povo, de se inspirar dum pensamento nacional, traía a sua missão fazendo-se instrumento da política católica romana, isto é, dos interesses, das ambições de um estrangeiro. D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos areais de África, pela fé católica, não pela nação portuguesa. Carlos V e Filipe II põem o mundo a ferro e fogo, porquê?, pelos interesses espanhóis?, pela grandeza de Espanha? Não: pela grandeza e pelos interesses de Roma! Durante mais de 70 anos a Espanha dominada por estes dois inquisidores coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade, para que o Papa desse outra vez leis à Inglaterra e à Alemanha. Era essa a política nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair as nações.

Tal é uma das causas, senão a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no sentir – no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se em tão íntimas profundidades, que tem escapado às maiores revoluções; passam por cima dessa região quase inacessível, superficialmente, e deixam-na na sua inércia secular. Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro de nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e com ele o espírito sinistro do catolicismo de Trento.

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Antero de Quental, «Causas da decadência dos povos peninsulares», conferência proferida no Casino Lisbonense em 1871.

acesso a: Biografia de Antero de Quental