REPÚBLICA e LAICIDADE

O Partido Republicano e as crenças religiosas


Raul Proença

Há certas verdades de tal maneira elementares e centrais num partido democrático que pareceria redundância estar a pô-las em evidência. Mas na vida há tempo para tudo, menos para pensar. Daí o sobreexistir ainda hoje uma lamentável confusão entre os partidos políticos e as crenças religiosas, confusão que tem sido propositadamente favorecida pelos clericais e cegamente mantida por ingénuos ou fanáticos.

Os homens da monarquia de tal maneira se consubstanciaram com os clericais reaccionários, e estes de tal maneira defendem a opressão do direito monárquico, que não é nada para admirar que tal confusão se estabelecesse no espírito pouco esclarecido dos nossos compatriotas. O clericalismo, longe de pôr a claro a questão, para interesse da pureza da crença, insistiu nesta imbecil e desgraçada mentira, por conveniência egoísta da seita. E os democratas, numa ingenuidade que seria pasmosa em gente velha, se não soubéssemos quanto pode ainda o autoritarismo dogmático, ei-los a servir os interesses dos reaccionários, repetindo a máxima clerical que não se pode ser republicano e deísta ao mesmo tempo!

Por isso se ouve a cada passo dizer que o Partido Republicano Português é e sempre foi livre-pensador (no sentido de ateu), e outras enormidades semelhantes, que só servem para comprometer sem vantagem a acção da sua política e diminuir singularmente a pureza do seu credo.


Num artigo da República, no tempo em que colaborámos nesse jornal, dizíamos nós ao escrevermos sobre a «disciplina partidária», que tanta gente confunde com a disciplina cega de um batalhão:

«Um partido monárquico é uma soma de consciências mortas: um partido democrático é um conjunto de liberdades vivas.»

Que queríamos dizer com isto?

Que um partido democrático não pode nem deve impor aos seus correligionários nada mais do que a observância rigorosa de certos princípios fundamentais, sem os quais esse partido não tem razão de existir.

Nós admitimos perfeitamente essa imposição máxima (se imposição se pode chamar a uma definição clara de atitudes), que não denota nenhuma intolerância. Os padres da Igreja não são intolerantes excomungando aqueles que divergem de uma maneira absoluta dos seus princípios admitidos. A sua Igreja tem uma acção, um destino, uma missão a cumprir; fora dela pode admitir outras acções, outros destinos, outras missões diferentes; mas o que não permite é que se suponha filiado na sua Igreja quem está em contradição com o que constitui a alma da própria Igreja. Excomungar é pois, dentro de limites prescritos, reconhecer uma divergência que os crentes foram os primeiros a levantar; como ninguém os obriga a concordar com as máximas fundamentais da Igreja (de outra maneira não seriam excomungados, mas forçados a comungar), é de um certo modo sancionar a liberdade de discussão; e representa, sob o ponto de vista moral, a disposição dessa Igreja em não colaborar na hipocrisia de um indivíduo que, tornando-se incompatível com os princípios da sua seita, insistisse em dizer-se inspirado no espírito restrito da seita.

Por isso, se um republicano começasse para aí a defender a intolerância religiosa, as ditaduras políticas, o regime de perseguição, não era apenas um direito, mas um dever do directório do partido, depois de o ter inutilmente esclarecido, excomungá-lo da sua agremiação política, dizendo-lhe: nós respeitamos de uma maneira absoluta a sua liberdade de consciência; dizemos-lhe mais: para nós a sua liberdade de consciência, como a liberdade de consciência de todos os homens, é a coisa mais preciosa do mundo. Pode ser mesmo que tenha razão e que todos nós laboremos no erro; pois bem: a melhor maneira que o senhor tem de manifestar a sua razão e o nosso erro é confessar que não pertence ao nosso partido. Quando todos nós erramos, seria uma insistência imbecil querer sujeitar-se ao nosso rótulo – que é o nosso erro. Antecipamo-nos pois, e acreditaremos, para não ter de duvidar da sua inteligência, que fizemos o que mais grato seria à sua vontade esclarecida.

Mas esta obediência querida, livremente consentida e livremente aceite, esta obediência que não é propriamente obediência, porque não representa uma sujeição servil, mas um acordo consciente e voluntário em determinados princípios «centrais» e «primordiais» de um partido democrático, levar-nos-á a estabelecer dentro dele uma «uniformidade» lata, de maneira que modos de pensar, de sentir, de compreender a vida, e de a viver, apresentem uma identidade absoluta? Nós que o quiséssemos, e ser-nos-ia impossível. Fosse possível, e mal de nós se o quiséssemos.

O interesse de todos os partidos democráticos está na expansão da vida individual, na maior diferenciação possível coexistindo com um acordo mínimo nos tais pontos de vista essenciais a que nos referimos. Um partido não é um rebanho: é uma agremiação de indivíduos livres com uma acção comum muito precisa. A acção precisa do Partido Republicano Português é estabelecer na sua pátria uma nova forma do direito, resolver os problemas nacionais da maneira mais lúcida, e apressar o advento de um regime social em que as liberdades individuais coexistam sem mutuamente se deprimirem.

Com esta acção que têm a ver as doutrinas religiosas?

Eu não posso reconhecer a supremacia do princípio democrático, desejar a minha terra mais livre e mais perfeita e acreditar nas almas dos antepassados, como Nippon, ou no deus Ftás, ou em Buda, ou na Santa Madre Igreja?

Que tem a ver a minha doutrina social com a minha religião pessoal, que é o facto mais fundo da minha personalidade e a expressão mais individual do meu sentimento humano?

Quem há para aí que, em nome dos princípios mais eternos, em nome das verdades mais altas e das necessidades mais absolutas, tenha o direito de exigir que eu – não seja eu?

Explica-se facilmente a obnubilação dos espíritos nesta matéria. Todos os «dogmáticos», todos os autoritários pretendem moldar os outros pela sua estrutura psíquica, vazar todos os sentimentos alheios na forma da sua idiossincrasia, de maneira a quebrar, a torturar, a dissolver todo o vislumbre de espontaneidade individual, todas as arestas, todas as especificidades, todos os relevos da pessoa moral. O seu ideal seria – egotizar o mundo. Deles dizia Emerson, na sua bela linguagem:

«Vous essayez de faire de cet être humain un autre vous. C´est assez d´un.»


São cristãos? Eles não admitem que no seu partido haja infiéis, porque o cristianismo é a doutrina da igualdade e da fraternidade e não se pode logicamente aclamar a democracia e negar o cristianismo. São deístas? Eles não compreendem como se possa desejar alguma coisa de profundamente justo sem a noção do Deus omnipotente. São ateus? Eles não percebem como se possa conceber a autoridade na forma monárquica e admitir ao mesmo tempo a doutrina da revelação. E todos, cristãos, deístas e ateus, acham muitas razões para excluir do seu grémio os que não pensem exclusivamente como eles.

Esta necessidade patológica da unidade absoluta, este autoritarismo sorrelfa e ignaro, esta vontade de querer rebanhos, é preciso ser combatida a todos os instantes por aqueles que não desejem ver diminuído o valor da vida humana.

«É ser insociável, escreve o moralista contemporâneo Jacob, não amar na sociedade de que se faz parte senão o que divide os associados, em vez de amar aquilo que os une.» A nós, democratas portugueses, separa-nos muita divergência de ideias, de crenças, de aspirações, de caracteres; tem-se dito mesmo que no Partido Republicano se formaram duas correntes; se alguma coisa há de triste nesta questão é o não se terem formado pelo menos… três; pela minha parte, confesso que me sentiria muito embaraçado se tivesse de me decidir por qualquer delas. Pois bem. É verdade que isto nos separa, mas não se trata de nos combatermos no que em nós é diferente, mas de nos amarmos no fito que nos une.

Reparai bem: eu não vos digo que esqueçais essas diferenças, que podem ser grandes, e que eu quero supor importantes. Não se trata mesmo de exigir aos dirigentes do partido um silêncio profundo sobre as crenças religiosas. O que se trata é de cada um tratar o problema religioso independentemente do problema político, sem ter de dar satisfações a ninguém, o que seria baixeza, mas também sem envolver o partido de que faz parte, o que seria infâmia. Simplesmente pelo facto de que somos livres-pensadores e republicanos concluirmos que todo o Partido Republicano é livre-pensador, é cometer uma generalização abusiva que ninguém nos deu o direito de cometer. Amanhã diria eu que o Partido Republicano era anti-militarista, só porque o sou; eu sei que o antimilitarismo é bem, mas sei também que o Partido Republicano não foi fundado para a defesa desse bem. E ser-me-ia muito molesto se amanhã dissessem que os republicanos gostam todos de omelettes, só porque eu gosto extraordinariamente de ovos. Eu sei que há republicanos que não gostam de omelettes.

E note-se, porque é preciso ir mais além: podia o Partido Republicano, de facto, ser livre-pensador, isto é: podiam todas as individualidades que hoje constituem o Partido Republicano confessarem-se ateus; isto não lhes permitia ainda que afiançassem que o «Partido Republicano era livre-pensador», porque seria fechar, sem direito nem razão alguma, a futuros democratas um campo que está aberto a todas as crenças religiosas. Seria como se dissesse que o Partido Republicano é um partido de homens com cabelos escuros e olhos pretos, só porque entre nós não apareceu ainda um louro ou um moreno de olhos azuis.

O que é aceitável, e legitimamente aceitável, é que todos os que forem ateus o confessem sem peias algumas (o Partido Republicano foi feito para libertar de peias e não para as conservar), sem se importarem com certas conveniências de táctica política, também muito discutíveis. Efectivamente, há quem pense que não é boa táctica atacar o cristianismo diante do grande público. Só a própria afirmação de que é preciso evitar a discussão de uma doutrina me enche de calafrios; quando a oiço tenho a impressão de que alguma coisa no universo tem diminuído de valor. Evitar, esconder, fazer mistério, tudo isso me revolta. Acho que é preferível chocar, subverter, arrasar, incendiar mentes, convulsionar almas, desencadear tempestades, a esta modorra paralisante da indiscutabilidade, que representa um desprezo pelos outros, uma abdicação da nossa pessoa e uma péssima educação cívica.

Só se faz educação cívica dando exemplos de civismo: pondo o homem livre em acção. Só se ensina a tolerância praticando a divergência.

Só clamando e gritando o que dentro de nós tem direito a ser clamado e gritado, só assim se pode preparar a geração do futuro, a grande geração acolhedora e livre, a geração que saberá amar e revoltar-se, a geração que saberá escolher e permitir…


Além disso, como afirmei no meu último artigo, as divergências que separam ateus e cristãos são mais aparentes que reais.

Tem-se atribuído às religiões um vício que pode coexistir com todas as opiniões: o despotismo sectário. Não é pelo que cremos que somos déspotas, mas pela maneira como cremos ou descremos, pela maneira como afirmamos ou negamos. Eu conheço muitos liberais portugueses que davam bem um negus da Abíssinia.

Ao Partido Democrático Português compete abrigar debaixo das suas bandeiras a todos os espíritos de bem, a todas as almas de amorosidade superior, a todas as consciências de devoção e de justiça, seja qual for a crença religiosa que professem.

Quando os sinceros cristãos entenderem que os infames que na Liga da Defesa Monárquica fizeram a apologia da denúncia, só prejudicam o seu ideal de pureza e fraternidade, eles julgar-se-ão infinitamente mais solidários connosco do que com esses vergonhosos bandidos. Então o reaccionarismo, reconhecido afinal o que ele é – um sistema de política e não uma doutrina religiosa – , sofrerá o mais rude e funesto golpe. Até lá, como as palavras os unem! E como elas nos separam!

Depende da nossa inteligência, do nosso trabalho, do nosso esforço, apressarmos essa vitória decisiva.

Digam os Srs. Monárquicos o que quiserem. A diferença que nos separa dos cristãos é mínima. Querer expurgá-los de nós por crerem em Deus seria imitar os clericais no famoso caso de Mme. Duplessis – que foi expulsa de uma colectividade por não querer cortar os cabelos.

Parece-me que não será legítimo excluir do Partido Republicano aqueles que tenham a ousadia… de os querer cortar à escovinha.


Raúl Proença

(Alma Nacional nº21, 30 de Junho de 1910)