REPÚBLICA e LAICIDADE

No Centenário do 5 de Outubro – A culpa

por Francisco Carromeu(1)

Um historiador que vive em Portugal em 2010, no pico dos reflexos da crise financeira internacional que começou em 2008 e é convidado a falar da passagem do primeiro centenário da implantação da República, não pode deixar de olhar para a conjuntura da época de que fala sem esquecer a época em que vive. E deve fazê-lo, não tanto por razões de ordem moral, mas por razões de ordem cívica, mesmo política, porque é, afinal, de anteriores experiências do governo da sua polis ou da sua res publica que fala e mesmo que não o explicite ele é levado a convocar quem o lê ou quem o ouve a comparações inevitáveis.

À data de 5 de Outubro de 1910, Portugal era um país deprimido. Depressão continuada que se manifestara, inicialmente no Ultimatum inglês de 1890 e que continuava em outros momentos seguintes, nos acontecimentos de 31 de Janeiro de 1891 no Porto, na crise financeira de 1891-92, nas dissidências provocadas no interior dos partidos rotativos do regime, nas ditaduras de Hintze Ribeiro e João Franco, na questão dos adiantamentos à Casa Real, no 28 de Janeiro de 1908, no regicídio e na persistente instabilidade governativa, apesar da vontade de «acalmação» que se seguira à aclamação de D. Manuel II.

A monarquia era o regime político com que o país se identificava. Vinha com ele desde a sua fundação e, 90 anos antes, até se tinha rendido às virtudes do estado-nação e tornou-se uma monarquia constitucional democrática e representativa, na mesma época em que todas as nações europeias o tinham feito, garantindo uma modernidade institucional respeitadora, progressiva e em melhores condições de poder responder aos anseios da nação e aos novos desafios da economia internacional.

Depois de algumas décadas de um razoável desenvolvimento, em 1890, o país é posto à prova com as repercussões de uma grave crise financeira internacional que rapidamente se transfere para o seu sistema financeiro. O seu endividamento externo era excessivo e os instrumentos institucionais de que dispunha não lhe permitiram defender-se nas melhores condições e as consequências foram trágicas. Com o tempo, demo-nos conta que elas foram a primeira causa da deposição da Monarquia: de 1890 a 1910, o desgaste das instituições da monarquia nunca deixou de se acentuar, arrastando-se de tal forma nos últimos anos que nem os seus titulares foram capazes de encontrar ânimo para as defender. De facto, o movimento de 4-5 de Outubro de 1910 foi feito com pré-aviso e nem assim foram capazes de mostrar qualquer reacção coordenada à desajeitada direcção de um determinado comissário da Marinha, barricado na Rotunda na companhia de 9 sargentos, heróis anónimos de uma vontade que supuseram ser a de uma nação inteira.

Importa, por isso, fazer uma revisitação, mesmo que breve, a esses 20 anos determinantes na degradação progressiva das instituições da monarquia, razão maior da queda do regime. Já se referiu que na origem da crise despoletada pelo Ultimatum inglês de 1890, estava a excessiva dependência do crédito junto da banca estrangeira, mormente da inglesa, dependência que o torna mais vulnerável no período em que as principais potências europeias decidem promover a partilha de África. A nova Alemanha de Bismarck não ficara satisfeita com a obtenção da Tanganica (hoje Tanzânia) e a Namíbia, nas fronteiras de Moçambique e da Angola, respectivamente e, quanto à Inglaterra, eram os territórios entre Angola e Moçambique que lhe permitiam evitar o isolamento da África do Sul. Nesse contexto, as razões evocadas por Portugal, mesmo estando em linha com o espírito da Conferência de Berlim, pouco alterariam das intenções da sua velha aliada.

À data do Ultimatum inglês, Portugal não tinha forma de evitar a ocupação desses territórios, em face da vulnerabilidade das suas contas públicas, situação agravada pela crise do Banco Baring Brothers, que nos elevaria os juros, numa fase em que o Estado português se vinha habituando a contrair empréstimos para o simples pagamento dos juros. Em 1891, vemos mesmo acontecer um governo demitir-se por não ter conseguido contrair um grande empréstimo em França, o partido que o sustentava não aceitar formar novo governo e o maior partido da oposição também não. Ambos informavam o rei, contudo que viabilizariam um governo de sua iniciativa e as medidas urgentes que fizessem cumprir os compromissos imediatos junto da banca estrangeira e evitassem a insolvência do Estado português. Foi nestas circunstâncias que tomou posse o ministério de José Dias Ferreira com Oliveira Martins como seu ministro das Finanças. Este, conseguiu negociar uma moratória para a amortização de Janeiro de 1892, reduziu os salários da administração pública, aumentou os impostos, fez publicar uma nova pauta aduaneira que reduzisse drasticamente as importações e a bancarrota foi evitada in extremis. Alguns meses após, foi José Dias Ferreira que se viu livre do ministro das finanças e os partidos do regime, não muito tempo depois, que se viram livres do governo.

Parece que ninguém quis assumir qualquer responsabilidade, nas dificuldades agravadas em que os portugueses passaram a viver. O ambiente político que se viveu em Portugal durante estes anos, foi o que inspirou Lopes de Mendonça e Keil do Amaral na composição de A Portuguesa, hino de grito de um povo que não aceita a ingerência estrangeira no seu devir colectivo e procura nas suas entranhas a força da sua independência. É neste ambiente que toma consciência política uma nova geração de universitários, que irá aderir ao Partido Republicano nestes anos e levá-lo até 1910. Serão formados sob o signo do equilíbrio das finanças públicas, condição que os republicanos sempre consideraram indispensável para o sucesso da república, da democracia e da economia de mercado.

Para estes republicanos era a monarquia a única responsável pela humilhação portuguesa. Nos parlamentos europeus Portugal era motivo de chacota, um país que não se levava a sério, onde os compromissos não se cumpriam, onde o endividamento continuado destinava-se, principalmente aos encargos da dívida, onde o poder executivo dependia da simpatia do rei e não tanto pelas maiorias que se sentavam em S. Bento (por isso, as continuadas ditaduras de Hintze Ribeiro e João Franco, com o fecho das Câmaras sempre que a oposição se opunha). Para garantir os seus empréstimos, Portugal hipotecara Angola, Moçambique e Timor, mas escondeu essa informação dos portugueses, tal como esconderam, o rei, Luís Soveral e o governo de então, os acordos secretos que a Inglaterra fizera com a Alemanha, na repartição entre ambas das colónias portuguesas.

Durante esses anos, o funcionamento das instituições da monarquia constitucional era uma sombra do modelo da Carta de 1826 e, para essa nova geração de republicanos, não funcionando as instituições da monarquia, era a própria monarquia que não funcionava. Mas, o Partido Republicano teimava em não poder afirmar-se como alternativa dentro do sistema eleitoral em vigor, elegendo, por vezes alguns deputados, principalmente nos centros urbanos.

O recurso à via violenta para a substituição do regime monárquico surge nos anos seguintes à crise financeira de 1891-92, quando alguns desses estudantes universitários, como Luz de Almeida, Afonso de Lemos e outros, lançaram as primeiras sementes do que viria a ser a Carbonária Portuguesa, enquanto procuravam convencer o maior número de dirigentes do Partido Republicano às virtudes do ensaio de um movimento revolucionário. De facto, foi necessário esperar pela sequência dos acontecimentos que se seguiram à revelação do escândalo dos adiantamentos que a família real vinha fazendo, com a cumplicidade dos sucessivos governos, mas sem que se reflectissem nas contas públicas que o parlamento votava. Essa revelação é de Novembro de 1906, a que se seguiu a célebre intervenção de Afonso Costa, na qual afirmava que “por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI!” (2).

A série de acontecimentos de que falei e que escuso de desenvolver é a seguinte: o encerramento das Cortes para evitar o derrube do governo de João Franco; as alterações no funcionamento da nova Alta Venda da Carbonária Portuguesa, com Luz de Almeida, Machado Santos a António Maria da Silva; um relacionamento mais intenso da Carbonária Portuguesa com o Partido Republicano; o movimento de 28 de Janeiro de 1908; a prisão das mais altas figuras do Partido Republicano; a iminência do desterro para Timor de todos os opositores a João Franco; o regicídio; a fragilidade política de D. Manuel II e o ambiente de conspiração permanente dos últimos dois anos do regime. Para os republicanos de 1910, eram claros os seus objectivos programáticos: fazer o reconhecimento internacional da República, numa Europa de monarquias; equilibrar as maltratadas contas públicas, único argumento válido de acreditação dos novos governantes; salvar as colónias; estabilizar a cotação da moeda portuguesa; garantir a economia de mercado e esperar que os portugueses compreendessem a bondade destas tarefas e a economia crescesse e se modernizasse, naturalmente, liberalmente.

Apesar das resistências iniciais da Espanha e da Inglaterra, o reconhecimento da República, lá se foi consolidando pelo ano de 1912, vencidas as incursões monárquicas vindas de Espanha e denunciadas as intenções dos renovados acordos secretos da Inglaterra com a Alemanha e os défices orçamentais deram origem a superavits em 1913 e 1914. No Parlamento, a República ainda conseguiu conter, pela célebre lei travão, as despesas extraordinárias dos ministérios, mas não conseguiu evitar as greves de 1911 e 1912, a eclosão da Primeira Grande Guerra, com a invasão imediata da Alemanha nos territórios de Angola, pela Namíbia e de Moçambique pelo Tanganica e pela sua declaração de guerra que, finalmente, só chegou a 9 de Março de 1916.

O esforço que Portugal fez para participar nesta guerra, única forma de garantir as colónias e a conjuntura internacional que se seguiu após o seu desfecho, abalaram profundamente as frágeis instituições da República, tal como aconteceu por toda a Europa que pretendeu empunhar as bandeiras da democracia e da economia de mercado. A agitação social e política agravou-se, os antigos partidos Democrático e Evolucionista fragmentaram-se, mas o equilíbrio orçamental foi conseguido, de novo, seis anos depois, em 1925. Tarde demais, ficou a ideia do não funcionamento institucional, a que se seguiu a Ditadura Militar e o Estado Novo.

Neste final de 2010, em circunstâncias difíceis para o nosso regime, prolifera em Portugal uma ideia que, sendo comum em muitos outros países, assume aqui níveis de especificidade cultural ou civilizacional, sobre os quais convém reflectir quando relembramos a República.

Quando a História nos parece barrar os caminhos do futuro, não resistimos, invariavelmente, a entrar na senda fácil da explicação decadentista de recusa de um olhar para o futuro e do entendimento do presente, espalhando culpas, erros e responsabilidades para terceiros, tudo e todos a esmo. Encontrámos os culpados da actual crise financeira, nos “governos que nos têm governado”; em 1974, os culpados do nosso subdesenvolvimento foram os responsáveis políticos do Estado Novo; em 1926, os culpados foram os republicanos; em 1910, os culpados foram os monárquicos; em 1820, a culpa esteve nos responsáveis pela manutenção das estruturas do Antigo Regime; antes, a culpa tinha sido do Marquês de Pombal; antes dele, a culpa era dos jesuítas; em 1640, a culpa era dos Filipes; em 1580, a culpa estava nos decisores da própria expansão portuguesa e até o primeiro de todos, D. Afonso Henriques tem-se visto culpado da sua rebeldia perante o primo Afonso VII de Leão e Castela.

A culpa parece, assim, ser uma constante da História portuguesa. Não nos enobrece como povo essa constante procura de “culpa” para uma qualquer dificuldade. As dificuldades ultrapassam-se com capacidade de decisão, honestidade, franqueza, firmeza e unidade. A ideia de culpa remete-nos para o campo religioso: de uma religiosidade que nos reduz à divisão de bons e maus, em que os bons são sempre as vítimas passivas de processos que desconhecemos. E é desse mundo do desconhecido absoluto que virá uma salvação, um messias, um D. Sebastião, justiceiro impoluto de uma justiça que não soubemos viabilizar, um Euromilhões de uma riqueza que não conseguimos ganhar, uma cidade santa de um país que não soubemos fazer.

Ser o país mais pequeno na Ibéria, um dos mais pequenos da Europa, um dos mais pobres do mundo a que queremos pertencer, não nos ajuda muito nesta libertação mental que carecemos e que só ultrapassaremos se acreditarmos em nós próprios e em cada um de nós e nos respeitarmos como cidadãos e como povo, com uma história longa e que, para existir, teve de ter vencido sempre, mesmo quando assim não parece.


  • (1) FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Conferência proferida no Centro Escolar Republicano Almirante Reis em Lisboa, no dia 3 de Outubro de 2010.
  • (2) Intervenção de Afonso Costa, in Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 20 de Novembro de 1906, p. 17.