REPÚBLICA e LAICIDADE

Ao separar os cadernos do Publico hoje de manhã à mesa do café, o primeiro título que me chamou a atenção estava no caderno Local e noticiava que uma figura de «Cristo» fora roubada, pela segunda vez, do presépio que se encontra num jardim de Faro. A câmara municipal, preocupada com a correcção religiosa do presépio, teme que não consiga repor a dita figura até dia 24. Pensei imediatamente: porque será que o católico militante António Marujo não juntou esta estória verídica aos pseudo-factos que coligiu no domingo passado, no seu afã para inventar uma «guerra ao Natal» que nem nos países anglo-saxónicos é real?

Passei ao caderno principal, e descobri com pasmo que o Publico dedicou as páginas dois e três à fantasmática «proibição do Natal», e que existem na edição de hoje deste jornal quatro artigos de opinião (incluindo o editorial) que se dedicam a combater denodadamente na «guerra pelo Natal». (Alguns deles retomam, como verdadeiros, pseudo-factos que a carta da Associação Republica e Laicidade ontem publicada refutara, numa demonstração do poder da «imprensa de referência» na criação de mitos urbanos.)

Dado que a Associação é referida em dois artigos de opinião de hoje (e no próprio conteudo noticioso), haverá a resposta devida neste local. Por enquanto, deixarei apenas, e a título pessoal, algumas precisões.

Primeira: a insistência em usar o termo «proibição» sugere que houve um esforço estatal, através de legislação ou de regulamentos, para normatizar as situações referidas por António Marujo, e que em muitos casos (as «boas festas» que desejamos a outras pessoas, por exemplo) estão muito para além (felizmente!) dos poderes dos Estados democráticos. Seria conveniente, a bem da clareza da discussão, que se separasse o que é feito por livre iniciativa de indivíduos ou empresas, daquilo que corresponde a recomendações do Estado. Porque, e é isso que toda esta discussão demonstra, existe na Europa ocidental um movimento de secularização da sociedade (abandono da religião e das suas referências), que não é dirigido nem coordenado, mas ao qual terá que corresponder, cedo ou tarde, uma consentânea laicização do Estado (aprofundamento da neutralidade estatal em matéria religiosa, e do igual tratamento dos cidadãos ). Por muito que custe aos conservadores, a queda na frequência das igrejas não é um fenómeno passageiro e terá necessariamente consequências (algumas das quais, perfeitamente espontâneas).

Segunda precisão: os laicistas portugueses não têm, nunca tiveram, um discurso de defesa do «direito à diferença», pois temem, fundadamente, que descambe na diferença de direitos. Os laicistas defendem a igualdade de direitos de todos os cidadãos , quer sigam a religião que foi maioritária, quer sejam de uma religião minoritária ou quer não tenham religião de todo.

Terceira: faço um apelo a que se deixe de usar expressões como «bem-pensante» ou «politicamente correcto» com sentido pejorativo. Pensar bem não é mau (penso eu… «bem» ou «mal»?), e cada um de nós defende aquilo que considera ética, social ou politicamente correcto, e combate ou denuncia o que considera incorrecto. Já vai sendo tempo de contar a verdade às crianças: o movimento «politicamente correcto» é uma lenda urbana, nunca existiu, pelo menos em Portugal.

Finalmente, e quanto ao fundo da questão: qualquer «fascista por Cristo» que me queira obrigar a desejar «um santo natal» em vez de «boas festas» estará a exigir-me uma hipocrisia que recuso, e a interferir com a minha liberdade de expressão . Se há empresas que fazem essas exigências, provavelmente também as haverá que façam o contrário, e quem não gostar pode boicotá-las em conformidade. O que me importa discutir é o facto, real, de que na escola publica portuguesa existem tentativas recorrentes e documentadas de impôr a religião a crianças cujos pais têm o direito, inalienável, a que sejam educadas sem religião (tentativas que chegam a incluir «comunhões pascais» em horário lectivo e sem autorização dos encarregados de educação). Nessa esfera estatal, qualquer abuso é e será combatido pelos laicistas portugueses (já dentro de casa e dos templos, cada um faz o que quiser e que os seus aceitem). Quanto aos presépios que se encontram nas repartições publicas e nas praças, a verdade é que estão no meio da rua. E se põem a religião no meio da rua, não se queixem da chuva, do vento e das reacções de quem passa.

Ricardo Alves