É tão pacÃfico que não haja sÃmbolos religiosos permanentes nas escolas públicas portuguesas que ninguém pede que sejam colocados. Compreende-se: o crucifixo não é um dos sÃmbolos da República que mantém essas escolas. E afirmar a religião compete à s igrejas, não à escola do Estado.
Todavia, desde 2005 que a Associação República e Laicidade questiona o Ministério da Educação, pedindo apenas uma circular que efective a não confessionalidade constitucional, retirando os crucifixos e cessando as cerimónias religiosas rituais que por vezes têm lugar nas escolas. E o ministério continua a fazer depender essa laicização, antipática para muitos, de um pedido explÃcito dos pais, empurrando os cidadãos para a constrangedora manifestação (pública) das suas convicções religiosas (privadas).
Existem portugueses crentes, católicos ou não; outros não têm religião, e são ateus, agnósticos ou indiferentes; o Estado não pode tomar partido por uns contra outros. E uma escola pública que seja veÃculo de difusão de uma religião, quer exibindo sÃmbolos religiosos, realizando comunhões pascais ou tolerando proselitismos disfarçados de actividades transdisciplinares, toma partido por uma fracção da população e afasta-se da sua função unificadora e de formação dos futuros cidadãos nos valores democráticos. Uma parede nua, pelo contrário, não impõe a anti-religião.
Na sentença em que decidem que os crucifixos em escolas públicas italianas não violam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os juÃzes de Estrasburgo assumiram que a sua decisão seria diferente perante provas de que, no caso concreto em julgamento, a presença daquele sÃmbolo religioso fosse pretexto para doutrinação religiosa, proselitismo ou cerimónias religiosas. Remeteram a regulação da questão para o âmbito interno de cada Estado, e frisam na 2.ª sentença que são poucos os Estados que, como a França ou a Polónia, especificamente proÃbem ou obrigam à presença desses sÃmbolos.
Em Portugal, a inacção do Governo tornou um enquadramento constitucional mais próximo do francês numa vivência concreta que, localmente, pode ser quase polaca. É esse o caso da Madeira, onde um recente despacho do Governo regional ordenou a manutenção dos crucifixos, desafiando a Constituição e a Lei da Liberdade Religiosa, mas sem reacção do Governo da República, sempre tÃbio perante aquela autonomia.
Os argumentos de tradição, maioria social ou “identidade cultural” foram desconsiderados na sentença. Recorde-se que a tradição dos crucifixos nas escolas portuguesas data de 1936, quando foram impostos como “sÃmbolo da educação cristã determinada pela Constituição” (a de 1933), através da mesma lei que instituiu o livro único e a Mocidade Portuguesa.
A sua permanência, com uma Constituição (a de 1974) omissa em referências religiosas e que preconiza a não confessionalidade do ensino, é um resquÃcio fossilizado da instrumentalização da religião para legitimar uma ditadura felizmente defunta. E a maioria não pode impor à minoria sÃmbolos religiosos: seria esquecer que a liberdade é, sempre, individual.
A sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem mantém a questão em aberto: confessionalismo ou laicidade?[1]
Ricardo Alves
Associação República e Laicidade
[1] Publicado no Diário de NotÃcias de 28 de Março de 2011.